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22 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

Sobre a igualdade

O Cristianismo conseguiu impor-se graças a duas grandes ideias que constituem a linha de força que, em linguagem publicitária usada nos tempos em que fui criativo gráfico em agências de publicidade, podem ser referidas como “o eixo” das suas preocupações de marketing.

A primeira ideia tem a força da fé: é o desejo de vitória da vida sobre a morte, que no Cristianismo é simbolizada pela ressurreição. Constitui o motor da expansão do credo ao nível do irracional. A crença na ressurreição do corpo, num hipotético dia do juízo final, acrescentada da, também hipotética, viagem “pós-morten” que a alma empreenderia para junto do deus que enche de ventura aqueles que, em vida, só padeceram tormentos.

Foto de Jacob Amson na Unsplash

Esta suposta vida a usufruir depois da morte é a imagem de marca e a espinha dorsal que sustenta o Cristianismo ao nível do irracional, porque encerra o essencial da vontade de todos nós, que é a fantasia de contrariar a morte, prometendo-nos uma vida eterna no etéreo, sem necessidades materiais, onde o pobre e o rico serão, finalmente, iguais (derradeiro consolo!).

A segunda ideia contém força social e política ao apregoar a “igualdade entre os homens”. Igualdade reconhecida ainda em vida, o que acaba por ser uma ideia positiva… embora não seja biologicamente correcta!…

Na verdade científica os seres humanos “são semelhantes”, mas “não são iguais”. Os códigos genéticos são idênticos na forma, mas não são iguais no conteúdo. Cada um de nós é detentor de um código genético único, o que faz com que cada um seja, realmente, diferente do outro. Biologicamente, cada um de nós é único.

A igualdade apregoada deve ser entendida como conceito social: igualdade no tratamento e nas oportunidades, tal como a nossa Constituição regista.

O conceito religioso da igualdade (amarás o teu próximo como a ti mesmo) é referido no Velho Testamento (Levítico: 19; 11-18), foi relembrado nos Evangelhos (Mateus: 22;39) e já era sugerido no Código Hamurabi (na sociedade babilónica há cerca de 3.800 anos) onde os redactores da Bíblia foram beber a ideologia que transcreviam em nome de um deus hipotético…

É um conceito que se compreende e deseja sob o ponto de vista humanista na tentativa de se eliminar diferenças sociais. A originalidade ideológica do Cristianismo reside precisamente no lembrar desta ideia da universalidade do Ser Humano, negando discriminações na afirmação de que todos somos iguais, contrariando os sentimentos de classe, rácicos e nacionalistas que estão tão “na moda” hoje, usados pelos anti-humanistas radicais de Direita… que querem ser governo!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

19 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 2/2

O nascimento virginal é, provavelmente, o aspecto crucial da natividade de Jesus Cristo.
Estranhamente, é também um conceito sem paralelo na Bíblia Hebraica e na literatura judaica pós bíblica, onde os nascimentos extraordinários ou ocorrem com mulheres que já ultrapassaram a idade reprodutiva, ou são fruto de uniões entre anjos e mulheres humanas, semelhantes às dos mitos greco-romanos. No entanto, estes nascimentos nunca implicam a conservação do estado de virgindade.
A história da antiguidade é rica em figuras com suposta origem divina. Considerando apenas as celebridades que viveram perto do tempo de Jesus, podemos citar, por exemplo, Platão, o gigante da filosofia que se acreditava ser filho de uma mulher e do deus Apolo; Alexandre o Grande, que tinha fama de ser o produto de uma aventura entre a sua mãe e Zeus; Apolónio de Tiana, profeta venerado pelas suas curas milagrosas e ressurreições de mortos, também ele resultado de uma investida de Zeus sobre uma donzela mortal; e César Augusto, que também teve créditos de paternidade divina. No fundo, trata-se de lendas que nos dão uma ideia do contexto mental dos gentios helénicos da época e que são, portanto, importantes para a compreensão histórica dos evangelhos.


Para sustentar a ideia do nascimento em estado virgem, Mateus cita a profecia de Isaías (7:14). Contudo, já há muito que se sabe que o original desta passagem não se refere a uma virgem, nem a qualquer tipo de concepção miraculosa. O equívoco acontece, porque o autor de Mateus cita a profecia de Isaías segundo a versão grega da Bíblia Hebraica (a Septuaginta), que contém vários erros de tradução. Um desses erros ocorre exactamente neste versículo de Isaías: enquanto o original hebraico refere uma ‘mulher jovem’ que irá conceber, a tradução grega refere uma ‘virgem’.
Baseando-se portanto em Isaías (7:14), o autor de Mateus pretende demonstrar que Jesus é o Messias previsto pelas escrituras. O equívoco fornecido pelo erro de tradução motiva-lhe a criação da história do nascimento virginal, uma fórmula que permite colocar Jesus acima de todas as figuras divinas do paganismo. A mensagem de Mateus é clara: Jesus não nasceu meramente de um deus, como Platão ou Apolónio de Tiana; Jesus é ainda mais divino – o seu nascimento foi ainda mais miraculoso: foi virginal.
O aspecto curioso a reter aqui é que a ideia da concepção virginal resulta de uma extrapolação da Septuaginta. Se, por acaso, Mateus tivesse usado a Bíblia Hebraica e não a sua versão (errada) em grego, é muito provável que a ideia da concepção e nascimento virginal – um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica – nunca tivesse surgido no seu evangelho. Eis a frágil natureza do alicerce dogmático.
Estranhamente, apesar de ser consensual entre os especialistas que o original de Isaías (7:14) não fala em ‘virgem’, o Catecismo oficial da Igreja insiste em citar, no seu artigo §497, essa passagem do Antigo Testamento com a palavra ‘virgem’. O artigo §498 “rejeita que a concepção virginal seja uma lenda ou apenas uma construção teológica sem pretensão histórica”. Isto quando a mais básica das avaliações históricas parece indicar exactamente o contrário, ou seja, que estamos perante um caso de pura invenção. Mas é assim mesmo que funciona a crença baseada na fé, esse substituto pobre da razão, que tem precedência sempre que as evidências e o pensamento crítico teimam em não corroborar as doutrinas desejadas.
A história da natividade relatada por Mateus assenta como uma luva no imaginário dos gentios e judeus helenizados do Cristianismo primitivo, a quem este evangelho foi inicialmente transmitido.
Segundo Geza Vermes [1], os elementos sobre o nascimento virginal fazem mais sentido se entendidos como um desenvolvimento posterior, uma espécie de prólogo propagandista para consumo de pagãos, que surge só na fase em que a história é transmitida em grego. Antes desta fase, ou seja na tradição pré-evangélica, Jesus seria identificado como o Messias davídico a quem era reconhecida uma relação especial com Deus, mas é pouco provável que se considerasse que era filho de mãe virgem.
Essa é também a opinião de Bart Ehrman [2]: nas tradições anteriores ao Novo Testamento, Jesus era visto pelos seus seguidores como um ser humano (não divino) que tinha sido adoptado por Deus como seu filho. A ideia da concepção virginal não fazia parte do quadro de crenças e era mesmo activamente rejeitada pelos Ebionitas, um dos grupos cristãos primitivos de que há registo, que partilhavam este ponto de vista que os académicos designam por adopcionismo. O facto do evangelho mais antigo (o de Marcos) não fazer qualquer referência à concepção virginal de Jesus reforça esta perspectiva.
A perspectiva adopcionista está em perfeita sintonia com aquilo que sabemos da antiga Mesopotâmia e da Babilónia, em que a divindade titular adoptava o rei como seu filho, conferindo-lhe poder. Este mito encontra reflexo em algumas passagens do Antigo Testamento e era com base neste tipo de filiação simbólica que os primeiros cristãos judeus atribuíam a Jesus o título de Filho de Deus. Segundo Randal Helmes[3], esta filiação nunca foi verdadeiramente compreendida pelos cristãos gentios, os quais, vindos de um ambiente pagão, conheciam unicamente a concepção divina de heróis, em que a divindade era literalmente o pai dessa figura. É, pois, com a transmissão do evangelho junto destes cristãos não judeus que surge, fruto dum processo de sincretismo, a história da concepção divina de Jesus. O erro na tradução grega do Antigo Testamento fornece o motivo adicional para a criação do mistério da concepção e nascimento em estado virgem, reforçando-se assim a imagem de um Jesus literalmente filho de Deus e literalmente divino. Negar a influência do pensamento pagão na génese dos mitos cristãos, como o faz reiteradamente a Igreja no seu Catecismo, é não só intelectualmente desonesto, como um sinal claro da irracionalidade da fé.
A terminar, uma última questão que não se relaciona com a Natividade, mas que vem no seguimento do tema anterior: a virgindade perpétua de Maria.
Na opinião de muitos académicos, é um engano supor que os evangelhos sustentam a ideia de que Maria se tenha mantido virgem até à morte. Trata-se de mais uma invenção da Igreja. Segundo Vermes e James Tabor [4], o dogma da virgindade perpétua não é detectável em passo algum do Novo Testamento, nem faz parte de nenhuma das crenças mais antigas dos primeiros cristãos. A maior parte dos escritos cristãos datados de antes do final do séc. IV EC, aceitavam sem reservas a ideia de que os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos nascidos de modo natural de José e Maria. A noção da “virgindade real e perpétua”, referida no artigo §499 do Catecismo da Igreja, não passa pois de um produto da imaginação fértil dos pensadores cristãos, obcecados com a ideia do sexo como veículo primordial de transmissão do pecado original.
EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament”, HarperCollins, 2011.
[3] Helmes, Randal; “Gospel Fictions”, Prometheus, 1989.
[4] Tabor, James; “The Jesus Dynasty: The Hidden History of Jesus, His Royal Family and the Birth of Christianity”, Simon & Schuster, 2007.

15 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 1/2

O Natal já não é como antigamente. Contudo, o motivo original da celebração – o nascimento do Messias da Cristandade – permanece ainda no subconsciente colectivo. Ainda temos presentes os traços gerais da narrativa da natividade de Jesus, que nos foi transmitida na infância, como um acontecimento bastante concreto e real, ocorrido há pouco mais de dois milénios, de onde derivam aspectos importantes do corpo doutrinal da Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas, afinal, o que vem a ser esta história extraordinária, feita de anunciações angelicais, nascimento virginal, reis magos, perseguição e fuga para o Egipto? Será este um conto assim tão singular? Até que ponto é que o drama por detrás da festa natalícia corresponde à verdade histórica?
Segundo a visão defendida pela maioria dos historiadores do cristianismo primitivo, o mais provável é que tudo não passe de pura ficção – produto de imaginações férteis e esperanças religiosas a actuar na adaptação de mitos pagãos populares.

Dos quatro evangelhos da Bíblia, apenas os de Mateus e Lucas mencionam as circunstâncias do nascimento de Jesus. Segundo Geza Vermes [1], a explicação para esta singularidade é que estes foram evangelhos particularmente dirigidos a uma audiência de pagãos, ou seja, gente para quem era importante não só a génese de Jesus, como a sua compreensão em termos identificáveis com a sua própria mitologia.
Mas o mais curioso é que as narrativas de Mateus e Lucas são incompatíveis em quase todos os aspectos. Sem exagero, pode mesmo dizer-se que os evangelistas relatam duas histórias completamente distintas. Se a história tradicional de Natal não nos é familiar no formato de duas versões independentes, isso deve-se à relutância que a Igreja sempre demonstrou em reconhecer abertamente discrepâncias nos seus textos sagrados.
Vejamos, então, em que diferem os relatos da natividade preservados nestes dois evangelhos. A perseguição de Herodes, a consequente fuga da família sagrada para o Egipto e o massacre das crianças em Belém só figuram na narrativa de Mateus. Apesar de todo o dramatismo deste episódio, Lucas nem se refere a ele. Em lugar disso, diz-nos que José e Maria se vêem forçados a viajar de Nazaré para Belém por causa de um censo, sendo por essa altura que nasce Jesus.
Além de discordantes, as duas narrativas levantam sérias dificuldades históricas. O massacre dos inocentes descrito em Mateus não é referido por nenhum historiador da época, como Nicolau de Damasco e Filo de Alexandria. Mesmo Flávio Josefo, que dedicou capítulos inteiros às muitas atrocidades perpetradas por Herodes, não nos diz nada sobre o assunto, pelo que o mais certo é que tal nunca tenha sucedido.
A efabulação da narrativa de Lucas ainda é mais fácil de detectar, uma vez que este situa o nascimento de Jesus por altura dum censo decretado por César Augusto e conduzido por Quirino. Ora, sabemos, por Josefo e outras fontes, que este censo teve lugar no ano 6 EC, isto é, 10 anos após a morte de Herodes. Portanto, se confiarmos em Lucas, concluímos que Jesus nasceu a 6 EC, o que contradiz a datação de Mateus de 4 AEC.
Além disso, segundo Lucas, José é obrigado a ir a Belém para se recensear, porque era descendente do rei David – que viveu cerca de mil anos antes. Ora, não é simplesmente credível que populações inteiras tivessem de se deslocar até ao local da sua linhagem ancestral de há um milénio. Certamente que a maior parte das pessoas não saberia para onde ir! Além disso, sabemos hoje que, naquele tempo, os censos não funcionavam assim.
Por que teria então Lucas inventado esta história? Porque, para Lucas, era de crucial importância colocar o nascimento de Jesus em Belém, indo assim de encontro à profecia de Miqueias (5:1), que apontava essa localidade como origem do Messias. Desta forma, os seus leitores não teriam dúvidas de que Jesus era o Messias, ficando ao mesmo tempo com a impressão de que uma antiga profecia se tinha confirmado. Mateus, por sua vez, não tem de recorrer a nenhum artifício para situar o nascimento do salvador em Belém, pois a sua narrativa já parte com o casal Maria e José a residir aí. Contudo, o argumento usado para desviar a família sagrada para Nazaré, após o regresso do Egipto, é também pouco convincente.
Mas há ainda mais diferenças relevantes a assinalar entre os dois evangelhos. Toda a narrativa de Lucas sugere um cenário simples e humilde. Jesus nasce num estábulo e é visitado apenas por um conjunto de pastores anónimos. E não há mais nada em Lucas. Pelo contrário, em Mateus, tudo é grandioso. Aqui o Messias nasce numa casa (e não num abrigo de animais), é anunciado por uma estrela e é visitado por magos do Oriente (que, já agora, nem são reis, nem são necessariamente três). Isto torna evidente que os dois evangelistas tinham de facto entendimentos muito diferentes sobre o Messias, razão pela qual não faz grande sentido misturar os elementos das duas narrativas, como é da tradição. Quando as duas histórias são combinadas, as mensagens individuais perdem-se irremediavelmente. Nas palavras do académico Bart Ehrman [2], o resultado que se obtém não é um quadro completo e mais detalhado dos acontecimentos, como quase sempre se julga, mas antes uma terceira versão da história.
A estrela é outro dos pormenores importantes na narrativa de Mateus. O sinal dos céus é algo recorrente na mitologia da Antiguidade como forma de assinalar o nascimento de alguém capaz de alterar o curso da humanidade. Uma nova estrela surgiu nos céus quando Abraão nasceu. O nascimento de Alexandre o Grande também foi marcado pela observação de uma nova estrela. O mesmo aconteceu quando nasceu César Augusto. Mateus não faz mais do que alimentar a tradição, inventando mais uma estrela e engrandecendo assim o nascimento do Messias à escala das figuras mais eminentes. O mesmo se passa com a homenagem prestada pelos magos, que também surge nas narrativas de outros autores relativas a diferentes personagens históricas. Plínio, por exemplo, menciona a homenagem de magos feita perante Nero. Suetónio faz referência a um mago que proclama o nascimento do Senhor do mundo, aquando do nascimento de Octávio.
O nascimento virginal é talvez o aspecto crucial da natividade de Jesus, mas esse é um tema que deixamos para a segunda parte deste artigo.

EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “Jesus, Interrupted: Revealing the Hidden Contradictions in the Bible (And Why We Don’t Know About Them)”, HarperCollins, 2009.

15 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O Natal de um ateu

Já me têm perguntado: “como é o Natal de um ateu?”. É uma curiosidade motivada pela ideia generalizada de que a sociedade está dividida em segmentos. Há o segmento religioso, o segmento político e o segmento futebolístico (no mínimo…). E também há quem pense que em cada segmento as pessoas funcionam de modo diverso das outras.

Para satisfazer os curiosos… cá vai:

Não posso falar pelos ateus em geral, porque cada pessoa é ela própria e não o decalque de quaisquer outras (consideração válida para ateus e religiosos); como os meus amigos sabem, religiosamente sou ateu, politicamente sou de Esquerda, e em futebol… sou contra! Não gosto de futebol, nunca joguei a bola nem entrei num estádio e não vejo campeonatos, nem pela televisão. Costumo dizer aos meus amigos que, para mim, o futebol está ao nível de Deus… não existe!

Quanto ao Natal… é uma festa religiosa das sociedades cristãs. Cada um de nós, embora seja dotado de raciocínio próprio, é sempre o resultado do meio em que nasceu – cresceu e foi educado – não lhe podendo fugir. O Natal e a Páscoa são festas religiosas do meio que me fez, mas também são profanas. A Páscoa nunca teve significado no meu meio familiar; é um Domingo como qualquer outro… sempre assim se procedeu em minha casa porque “a ressurreição” (no figurino em que os religiosos cristãos a apresentam) não tem sentido.

Já o Natal é a “Festa da Família”. É um dia em que se reúnem familiares mais chegados, habitualmente separados por factores profissionais ou de residência distante, num jantar comunitário (designado por Consoada, palavra derivada do latim Consolata que quer dizer “refeição partilhada”) onde se sacrifica um bacalhau salgado, já sacrificado no Mar do Norte, regado com azeite de Trás-os-Montes e acompanhado de um bom vinho. Há sobremesas doces e distribuição de prendas, e findo o serão vou dormir sem assistir “à missa do galo”.

Imagem da Unsplash

Portanto, retirando a missa e as orações dos Católicos (que nem todos cumprem), o meu Natal de ateu é igual ao Natal de um religioso!

As datas religiosas da Igreja Católica, como Páscoa e Natal, têm a ver com a vida de Jesus Cristo, enquanto ícone deífico dos cristãos… mas também estão ligadas à Natureza, aos equinócios do Inverno e da Primavera. Toda a vida dos Seres Humanos é baseada, em primeiro lugar, na Natureza, e depois na sociedade e no seu folclore próprio e sazonal, que pode ser laico ou religioso, mas que é, sempre, folclore inerente a cada grupo social, que a Antropologia, a Etnologia e a Sociologia, estudam e explicam.

O Pinheiro e o Presépio

Nos meus tempos de miúdo ia cortar, numa bouça próxima de casa, um pequeno pinheiro recém-nascido, que enfeitava com bugalhos forrados com prata retirada dos maços de cigarros (encontrados no lixo e no chão da rua) rematando a obra com bocadinhos de algodão a fingir de neve (se tivesse vinte e cinco tostões para comprar pequenas bolas de vidro, coloridas e muito frágeis, e dois pacotinhos de minúsculos chocolates amarrados com uma fita de seda, para pendurar na árvore… era uma festa e a obra ficava espectacular!) sem ter consciência de que a tradição da árvore de Natal estaria ligada às crenças dos povos pagãos do norte da Europa, principalmente à celebração do Solstício de Inverno – a noite mais longa do ano – como homenagem à Natureza adormecida.

Já o Presépio encerra uma outra história para além da relação com o Solstício de Inverno. Uma breve consulta ao Novo Testamento mostra-nos que de entre os evangelistas que nos falam da história de Jesus nenhum deles narra a cena que estamos habituados a ver designada por Presépio. Mateus (2:11) diz-nos que os reis magos “entrando na casa acharam o menino com Maria”. Logo, o estábulo da tradição não existe nesta referência, já que o local do nascimento seria “uma casa”.

Marcos e João omitem o nascimento de Jesus, referindo-o já como adulto, quando é baptizado nas águas do rio Jordão por João Baptista.

Lucas (2:7) já nos diz que Maria “deu à luz o seu filho primogénito e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

A necessidade de José e Maria terem um lugar para pernoitar, devia-se ao facto de se terem deslocado de Nazaré, onde viviam, para Belém, na obrigação de se recensearem, no cumprimento de um decreto do imperador César Augusto que obrigava ao recenseamento de todos os cidadãos; e o casal partira para o local quando Maria já estaria num estado avançado de gravidez.

A imagem do Presépio que hoje figura na maioria das casas e nas montras das lojas na época natalícia, teve origem numa ideia de Francisco de Assis que, em 1223, festejou o Natal fora da igreja, montando uma manjedoura na floresta de Greccio, Itália, colocando junto dela um boi e um burro como elementos tradicionais de um estábulo.

O povo não entendeu de imediato o significado daquela encenação, mas durante a Idade Média o costume espalhou-se e, em 1567, a Duquesa de Amalfi mandou montar um grandioso Presépio com 116 figuras representando o nascimento de Jesus Cristo com a adoração dos reis magos, dos pastores e com anjos a cantar.

A partir do século XVIII o costume espalhou-se pelas casas dos crentes, mantendo-se até hoje… e convenhamos que o Presépio, enquanto decoração natalícia, fica muito bem nas montras das lojas e nos centros comerciais, nesta época de chamamento ao consumo desenfreado… conotando uma festa de cariz religioso, com o consumismo.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

8 de Dezembro, 2024 João Monteiro

Guy de Poças Falcão

Acabámos de tomar conhecimento, com tristeza, do falecimento do nosso associado Guy Alberto Fernandes de Poças Falcão.

A nível profissional, Guy era licenciado em Economia, pela Faculdade de Economia do Porto e exercia como Revisor Oficial de Contas (ROC) desde 1973. Exerceu a atividade de economista em regime liberal, foi professor assistente na Faculdade de Economia do Porto, consultor económico de empresas, ROC suplente na Portugal Ventures, entre outras atividades. Para além de ter sido membro da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, foi também um dos seus pioneiros e fundadores.

Em nome da Associação Ateísta Portuguesa, gostaria de deixar um abraço sentido, neste momento de pesar, aos seus familiares, amigos e colegas que com ele privaram de perto.

Para quem estiver no Norte do país, e se quiser juntar para uma última despedida, informamos que as cerimónias fúnebres decorrerão domingo, 08 dez, das 15h às 20h, e segunda-feira, 09 dez, das 12h às 17h, no Tanatório de Paranhos, Rua Dr. Roberto Frias, Porto, seguindo-se a cremação.

8 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

Crer é um acto intelectual

Muito provavelmente a ideia de Deus (dos deuses) entrou em processo de depuração logo após a termos criado, por sentirmos que o caminho dos deuses, afinal, era uma vereda muito mais estreita do que a estrada que ambicionávamos pisar. Razões diversas estarão na base da motivação que nos levou à criação das divindades – que imaginávamos ter-nos oferecido o mundo, a vida e a felicidade eterna – e à eleição de um deus particular para cada momento dos dias que os deuses nos ofereceram para os cultuarmos. Começamos por criar um panteão onde colocamos os deuses da nossa invenção e, com o evoluir do pensamento,

destruímos o panteão e elegemos um único deus (um deus-single) para nos servir a todo o tempo e em cada situação de vida.

A ideia do divino é comum a todas as sociedades porque o Ser Humano é único e universal. Somos o mesmo ser em todas as latitudes e em todos os tempos, e as motivações que nos levam à adoração do que quer que seja, são universais; apenas modificadas por questões culturais de cada povo e em cada época.

Em todas as sociedades há um fundo comum embelezado com as crenças, às quais não é estranha a humana necessidade da introspecção, a inquietude do acaso, a fuga à solidão e às agruras da Natureza, e o sentimento da insegurança, acrescentando o medo da morte como “medo máximo” que eternamente nos consome.

O vencer do caminho que nos conduziu ao abandono de um panteão, pretensamente (mas também enganadoramente) protector de todos os males, e ao apuro de um único deus, acabará por dispensar, também, o deusJeová (Alá) – criado pelos Hebreus, reciclado por Jesus Cristo e adoptado (e adaptado) por Maomé – que sobrou da purga que o passar do tempo e o evoluir do pensamento promoveu no panteão que gregos e romanos herdaram da civilização mesopotâmica.

Na verdade antropológica, “deus habita em nós”. Isto é: existe no nosso pensamento… mas não passa de uma ideia, não se encontrando em mais lado algum fora da cabeça de quem crê. A crença num deus (ou em deuses e santos) é uma característica da nossa espécie de “Sapiens”, a qual nos diferencia de todos os outros animais nossos companheiros da vida na Terra.

Imagem gerada por IA

Porém devemos ter a consciência de que a crença é um acto intelectual. Aqueles ateus “em princípio de carreira” que vociferam contra tudo quanto “cheira a incenso”, se não tiverem essa consciência também não têm discurso que mereça ser ouvido. Se cremos, é porque sentimos que precisamos de crer; se criamos deus à nossa imagem e semelhança, foi porque sentimos necessidade de o fazer, já que o Homem só cria aquilo de que necessita. (A exploração social e económica que dessa ideia se faz, por uma elite exploradora de tal sentimento… é que já é outra conversa!…)

O sentimento da religiosidade é comum a todos os humanos independentemente das geografias em que se encontrem, e só está vedado aos restantes animais por não terem intelecto. Foi a nossa capacidade de raciocínio, a inteligência, a sensibilidade e o sentido estético, que nos levou à criação da Arte, ao entendimento do belo e à criação de deuses (que depois transformamos no Deus único).

Esta faceta criativa que nos caracteriza, faz de nós uns seres especiais. No entanto, quando em discordância com os nossos semelhantes, somos capazes de adoptar comportamentos iguais aos de um qualquer animal predador porque a nossa origem natural, enquanto animais, é a mesma!… 

Embora raciocinemos, deixamos, imensas vezes, a nossa sensibilidade tormentosa comandar-nos tomando conta da razão… e, por esse caminho, se bem virmos, até ficamos em patamares inferiores relativamente aos irracionais nossos companheiros de reino, porque enquanto que eles só guerreiam por alimento, por fêmea e pelo domínio do grupo, nós fazêmo-lo pelas mesmas três razões dos irracionais que consideramos inferiores… e ainda acrescentamos a lista, deixando-nos tomar por uma irracionalidade e uma cupidez que demonstram o pior da nossa condição animal, incluindo na lista das malfeitorias a crença em Deus quando a usamos como arma discriminatória e até mortífera (embora, ao mesmo tempo, o louvemos e lhe cantemos loas… o que sublinha a nossa imponente estupidez).

Isto parece-me incongruente com a capacidade que temos de raciocinar… mas a verdade é que nós somos assim… somos um produto natural ainda muito mal acabado!… (Espero que a evolução natural “lime as arestas” e nos melhore… mas isto, se calhar, também já é crença!).

Nós só erramos porque somos imensamente ignorantes… alguém disse que  “o erro é uma ignorância que se ignora”. A ignorância também é uma das nossas características. Todos nós somos ignorantes, até mesmo os sábios… que só o são no seu tempo e no seu ramo… e, mesmo assim, com limites.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

1 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O mistério da água na Criação

Neste momento tenho em mãos a finalização de um projecto de livro onde abordo o Génesis bíblico sob o ponto de vista de um leitor laico da Bíblia.

Interpreto os textos bíblicos com o conhecimento do meu tempo (e apenas daquele conhecimento que detenho, ou imagino deter, porque sei que não sei tudo) sem esquecer que os autores das narrativas bíblicas não o possuíam, e só puderam registar o conhecimento que tinham no tempo e no lugar em que as escreveram há cerca de 3000 anos. Obviamente, os seus saberes (no âmbito das minhas premissas) seriam muitíssimo mais limitados do que são os de qualquer um de nós (dos interessados pelo mesmo tema), três milénios depois.

De acordo com isto, o que se narra no Génesis mereceu-me a apreciação que faço no referido projecto de livro, dando conta de que a simplicidade com que a “Criação divina” é descrita na Bíblia se assemelha a um conto infantil dos mais puros, cujas acções narradas não precisam de coerência, aparecendo do nada sem qualquer ligação com a realidade das coisas.

O infantil leitor não tem qualquer dúvida sobre a verdade do conto entendendo-o como verdade sem necessitar de o ver explicado.

Uma narrativa deste tipo não pode ser negada, porque é ficção poética… e é bonita!…

Como tal, não pede explicação nem merece contestação. Seria uma estupidez contestar um poema!

A liberdade criativa dos poetas, dos escritores e dos artistas em geral, não tem limites. A dos autores dos textos bíblicos também não… e devemos entendê-los num enquadramento temporal, geográfico, social e político, que hoje temos muita dificuldade em imaginar.

Porém, para os intrinsecamente crentes, isto não é poesia… é da melhor realidade histórica a merecer crédito imediato!

E é aí que começa a crítica que tais crentes merecem (não a poesia da Criação), por parte de quem ultrapassa as interpretações de fé, aceita a poesia, mas não permite que lha dêem como sendo notícia de um acontecimento real.

Uma narrativa deste tipo não pode ser contestada enquanto texto poético. Contestá-la seria uma atitude tão sem nexo como é afirmá-la… não se contestam brincadeiras de criança, nem lendas, nem poemas.

As lendas são para serem lidas e apreciadas nas suas poéticas, e apreendidas as lições subliminares que, eventualmente, possam conter, não sendo líquido que todas as contenham.

O Génesis nada mais é do que isso, e na sua apreciação devemos considerar as circunstâncias em que foram registadas estas ideias com a presunção de serem reais, não esquecendo que os autores do Velho Testamento as copiaram de narrativas da civilização Suméria, na pretensão (e presunção) de escreverem a história do povo judeu como sendo o “povo eleito de Deus”.

Porém, como as religiões gostam de afirmar a “realidade contida na palavra de Deus”, neste meu exercício lúdico de imaginação pura que transcrevo na hipótese de livro e que aqui comento, encaro a “veracidade da narrativa” conforme a vontade daqueles que a afirmam. Consequentemente, coloco no referido projecto de livro o rosário de dúvidas que tal “realidade” me suscita, sem pretender nada mais que não seja, simplesmente, fazer um exercício lúdico.

Vejamos: o Génesis diz-nos que Deus criou o mundo em nove etapas, ou tarefas. Quase dia sim, dia não, obrava duas delas, num total de seis criações, e as restantes três contaram com um dia para cada uma.

As tarefas do primeiro dia incluíam a criação “dos céus e da terra, da luz e da separação do dia e da noite”. No segundo dia foi criado “o firmamento”, e só no terceiro dia se procedeu “à separação da terra e do mar” (sendo o mar composto por água… é aqui que está o berbicacho!… Já volto ao assunto).

A grande obra de Deus iniciou-se com a tarefa de criar estes dois primeiros elementos: os céus e a terra. No contexto da criação do mundo entendo o termo Terra como substância constituinte do solo do planeta (Land, em inglês), e não no seu todo enquanto planeta (Earth, em inglês), porque Deus terá criado o mundo por etapas, e a terra (Land) foi uma delas. Se o termo Terra referisse o planeta (Earth) não haveria nada mais para criar depois dele, porque o planeta compreende um todo, incluindo o solo, a água, a atmosfera e todas as formas viventes, vegetais e animais que lhe são próprias, pelo que a obra ficaria completa na primeira tarefa.

É de notar que esta primeira criação foi obrada às escuras, pois a luz ainda não havia sido criada (e o termo céus, no plural, é enigmático). Portanto, após a primeira criação, não havia nada mais do que céu (não se sabendo bem o que isso seja) nas alturas, e rocha, terra e pó, no abismo.

Porém, prevalece este mistério: O início do Génesis começa por afirmar que “o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Génesis: 1;2)… que águas?!… De onde brotaram elas?!… Se foi o mesmo Deus quem as criou, os escribas esqueceram-se de registar tão importante e vital criação!

Imagem gerada por IA.

Se o Génesis não refere a criação da água, mas afirma a sua existência após a primeira criação (os céus e a terra), devemos aceitá-la como existindo prévia e independentemente da obra e da vontade de Deus?!… E em que recipiente se encontrava ela?!…

Coisa estranha… mesmo para um poema!…

29 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Levanta-te e pensa

«Pensar é o trabalho mais difícil que existe, o que é provavelmente a razão porque tão poucos se envolvem nele»

(Henry Ford. 1863-1947)

A minha crónica de hoje é a transcrição do texto de abertura da 2ª Edição do meu livro “O Homem Criou Deus”.

O seu título é uma adaptação do que se lê no Novo Testamento, na cura do paralítico de Cafarnaum: “Levanta-te e anda” (Mateus: 5; 6), cujo figurino é usado em comédia no programa televisivo “Levanta-te e ri”.

Tal como o exemplo desta frase que foi adaptada repetidamente e usada em diferentes situações, também a vida de cada um é uma repetição da vida de todos nós, com mais ou menos nuances que emprestam outro colorido à nossa vida, tal como as diferentes fórmulas que glosam a frase bíblica que conduziu ao título desta prosa.

Ninguém inventa a sua vida… todos a temos oferecida pelo nascimento que não pedimos (o filósofo Agostinho da Silva dizia que “nasce a gente de graça, para depois ter de ganhar a vida!)… depois, todos nós a podemos melhorar ou piorar de acordo com as acções usadas no preencher dos dias, ornamentando-a com as melhores cores que conseguimos engendrar, ou pintando-a a preto e branco… embelezando-a ou borrando-a.

A escolha é nossa… mas também pode ser condicionada pela sociedade.

Por muito má que consideremos ser a nossa vida, há sempre um momento para nos determos numa reflexão suficientemente profunda e encontrarmos algum modo de corrigirmos o rumo que, por qualquer razão, intuímos não nos conduzir para o melhor dos destinos que para nós sonhamos.

Esta reflexão filosófica é uma função positiva da Religião… talvez a principal… não será a única porque é acompanhada pelo processo do luto que menoriza o sofrimento.

Porém (há sempre um “porém” que pode fazer a diferença das nossas escolhas) devemos estar atentos à corrente do “rio religioso” que decidimos navegar!… Ela nem sempre nos dirige para a melhor foz, nem nos conduz pelo melhor leito!

A corrente pode transportar-nos para águas mansas e calmas, permitindo-nos a contemplação das margens que as guiam, ou, pelo contrário, podem desaguar em desfiladeiros tormentosos com correntes imparáveis de efeitos desconhecidos quando as margens, ao invés de guiarem a corrente da água… a comprimem e convulsam!

A escolha da rota é sempre do discernimento de quem navega o rio da Religião…

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico.

Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

OV

28 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Sobre a Sabedoria

Fonte: Pixabay

No centro de todas as coisas está uma grande verdade que teimamos em não ver. Ela diz que todos nós somos ignorantes, por muito sabichões que nos sintamos! A presunção e a vaidade de nos imaginarmos certos, são características do Ser Humano… e a condição humana tem os seus custos.

Não se é humano impunemente, a consciência paga-se, e as consciências “religiosa e pátria” são duas das pesadas facturas que andamos a tentar liquidar desde que inventamos deuses e fronteiras… e vamos continuar a pagá-las por muitas e incontáveis gerações, enquanto consumidores de mitos adorados e afirmados como “realidades indesmentíveis”.

Julgámo-nos civilizados por vestirmos de acordo com a última moda de Londres, Roma ou Paris e usarmos o último modelo de telemóvel. Afirmámo-nos sábios só porque sabemos dizer “Ácido Desoxirribonucleico”… mas na verdade a nossa ignorância e cupidez não têm limites.

Todos nós somos ignorantes. Os próprios cientistas só estudam e investigam porque não sabem!… Se soubessem não precisavam de se dar a esse trabalho, porque já sabiam!

Os cientistas são os técnicos superiores da classe profissional cuja missão é a procura de explicações, tal como um detective investiga e procura a verdade de um crime. Lá porque tais trabalhadores se encontram afogados na preocupação de investigar, experimentar e comparar, não se pense que estão sempre a tropeçar em conclusões indesmentíveis, óptimas e certeiras. Não!… Bem pelo contrário; o erro é, talvez, a palavra mais mencionada nas investigações científicas.

O cientista esbarra mais vezes no erro, do que encontra certezas. Reconhecer o erro e seguir outro rumo, é meio caminho andado para o encontro da verdade que se procura. Sem a capacidade de se reconhecer e aceitar os erros cometidos (descartando tais hipóteses) não há avanço científico.

Ao contrário dos cientistas que procuram navegar o mar do conhecimento, no lago das águas inquinadas da Política e da Religião, o seguidismo de credos bolorentos e extremistas, mais a ignorância e a insensibilidade, têm sido as ferramentas com que se formam governos e destroem sociedades.

Uma sociedade verdadeiramente construída por gente civilizada e sábia, não tem lugar para deuses, nem para corruptos e ditadores, nem o Povo passa mal, nem o poder económico está nas mãos de meia dúzia de famílias… nem, sequer, é poder… o que quer dizer que não há sociedades com tal inteligência e sensibilidade, pois em nenhuma assenta este retrato!…

O Ser Humano é a última etapa evolutiva da vida na Terra… e ainda está verde. Somos a derradeira experiência da Natureza e toda a História da Humanidade se inscreve na ponta final desse espaço ínfimo de tempo que o Holoceno representa no bilhete de identidade do planeta, e mais precisamente no Antropoceno, o período mais moderno, em que temos provocado mudanças ambientais e trágicas.

Sendo um tempo demasiadamente curto para um apuro natural da espécie recém-nascida, já é demasiadamente longo nas inúmeras acções desestabilizadoras que promovemos no meio que nos criou.

Consciente ou inconscientemente somos agressores constantes da Mãe Natureza que nos permite viver. Destruímos demasiados espaços verdes, poluímos rios, mares e a atmosfera. Promovemos a extinção de espécies animais ao matá-los para comer e por desporto, e ao destruir-lhes o “habitat”.

Somos suficientemente ignorantes para não darmos conta de que, com todas essas acções, cavamos a nossa própria sepultura num suicídio colectivo e lento… mas, infelizmente, eficaz.

E quem alerta os poderes para esse trágico fim à vista, não é convenientemente ouvido, porque a destruição enriquece os destruidores que os poderes políticos e económicos protegem… o que é exemplo de primitivismo puro!…

Este primitivismo em que nos movimentamos, na convicção de sermos expoente máximo da evolução e de termos as melhores ideias da vizinhança, é o retrato de todos nós embora não o queiramos assumir, nem ver.

Assumir as nossas fraquezas e os nossos erros é um sinal de inteligência… mas a maioria esmagadora de nós (enquanto povo governado) e, provavelmente, a totalidade dos mandantes (que nos governam) está amputada dessa sensibilidade.

Em tal contexto, o mundo é, cada vez mais, um sítio perigoso para se viver… mormente quando assistimos à tomada do poder por imperadores fora do tempo dos impérios, que derramam sangue e destroem, na ânsia de exercerem um poder pacóvio, estúpido e criminoso.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

OV

27 de Novembro, 2024 João Monteiro

Poesia de António Gedeão – Filosofia

Talvez entre os poemas mais conhecidos de António Gedeão se encontre a “Pedra Filosofal”, publicado no livro “Movimento Perpétuo”, em 1956. O poema viria a ser musicado anos mais tarde por Manuel Freire e, posteriormente, cantado por grandes nomes da música portuguesa e também pelas tunas académicas. Por ter sido inicialmente cantado na televisão, fez com que se tornasse ainda mais conhecido do grande público e de várias gerações. Hoje é quase um lugar-comum dizer que o “sonho comanda a vida”, aludindo à última estrofe do poema.

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara graga, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão (1956)